"Não vemos as coisas como elas são, vemos as coisas como nós somos."
Anaïs Nin
Desde que iniciei o podcast, a ambivalência tem sido um tema recorrente em minhas reflexões e é a base ‘filosófica’ do projeto Due Tramonti. A Renata Netto do Nascimento compartilhou reflexões potentes neste flowdase inaugural sobre o tema.
Ao longo da fala, entendi que a coerência surgiu como um balizador interessante para pensar a gestão dessas ambiguidades na vida, especialmente no processo migratório. Foi daí que veio um novo flowdase, publicado essa semana, para aprofundarmos essa conversa. Afinal, até que ponto a coerência nos guia – e quando ela se torna uma prisão?
Ser coerente nos ajuda a construir relações de confiança, manter o alinhamento com nossos valores e tomar decisões mais seguras. Mas será que, em nome da coerência, não acabamos resistindo a mudanças necessárias? Muitas vezes, ficamos presas a padrões de pensamento e comportamento que já não fazem sentido, simplesmente para mantermos uma narrativa coesa sobre quem somos. Como equilibrar autenticidade e flexibilidade sem perder nossa essência?
"A completude não é alcançada cortando uma parte do ser, mas pela integração dos contrários."
Carl Jung
Te convido a refletir com a gente sobre esse jogo entre coerência e ambivalência. Neste flowdase mais recente, Isis Stelmo e Marcia Guimarães trazem reflexões importantes pra gente iniciar essa conversa.
Are the dog days really over?
Conhece essa música? Essa letra? Vem comigo.
Dog Days Are Over | Florence + The Machine
Happiness hit her / A felicidade a atingiu
Like a train on a track / Como um trem nos trilhos
She hid around corners / Ela se escondia pelos cantos
And she hid under beds / E se escondia debaixo das camas
She killed it with kisses / Ela a matou com beijos
And from it she fled / E dela fugiu
The dog days are over / Os dias difíceis acabaram
The dog days are done / Os dias difíceis se foram
The horses are coming / Os cavalos estão chegando
So you better run / Então é melhor correr
Run fast for your mother / Corra rápido por sua mãe
Run fast for your father / Corra rápido por seu pai
Leave all your love and your longing behind / Deixe para trás todo o seu amor e saudade
You can't carry it with you if you want to survive / Você não pode levá-los se quiser sobreviver
Happiness hit her / A felicidade a atingiu
Like a bullet in the back / Como uma bala nas costas
Struck from a great height / Disparada de uma grande altura
By someone who should have known better than that / Por alguém que deveria saber melhor do que isso
The dog days are over / Os dias difíceis acabaram
Can you hear the horses? / Você consegue ouvir os cavalos?
'Cause here they come / Porque eles estão chegando
Eu conheço essa música há algum tempo. Em meados de 2021, ali pela primavera do sul do mundo, estava eu esvaziando a casa para iniciar o processo de migração, quando ao cantar a letra junto distraidamente, ela bateu diferente pra mim. Associei a letra ao que estava sentindo como motivação para ir embora: estava em busca do fim dos dias difíceis.
ô, meu anjo, querido Rodrigo do passado, eu queria ter te contado, mas não tinha como…os dias realmente difíceis estavam apenas começando…
Motivação pra migrar? Exaustão. De muita coisa, de muita gente, de não entender como as coisas são da forma que são. Cansado de esperançar, também. De lutar sem fim e não ter o mínimo de segurança, o básico da previsibilidade, o desejável na materialidade. Tinha razão de estar puto? Sim. Um pouco histérico na reação? Talvez. Mas fiz o que tinha que ser feito e não me arrependo. É bom sentir isso.
O chá revelação dos ‘dias-difíceis-never-ending’ aconteceu quando os cavalos da música me atropelaram, passando por cima do pequenino amor próprio que eu tinha conseguido construir às duras penas e muitas sessões de terapia pós dois relacionamentos homoafetivos péssimos (e evitáveis).
Como ser feliz quando nossa capacidade de nos comunicar regride drásticamente e nos impede de expressar todo o garbo e esplendor da nossa fantasia? Beijo, Milton Cunha.
Como ser feliz quando nos olham de cima pra baixo como se a gente fosse um ser exótico em busca de coisas que facilmente entediam a pessoa que nos olha em itálico e com certa pena? Odete Roitman vive.
Como ser feliz quando você é reduzido a um processo burocrático que leva o tempo da ineficiência de um sistema confuso, atrapalhado e caro? Tá perdoado pelo que você fez no filme ‘um dia de fúria’, Michael Douglas.
Como ser feliz, no presente em construção, quando a gente resolve resgatar as memórias mais preciosas de quando éramos ‘persona grata’? E quando habitamos mais estas memórias do que a oportunidade de viver o que desejamos em algum lugar deste mesmo passado?
Então, calma lá, anjo. A própria música traz a pista de como a felicidade, essa safada nada ordinária, mostra a fuça. Volta lá na letra, pô.
Sempre comento que a migração é como uma morte, só que escolhida por quem decidiu viver. Sim, viver o desejo, o fora, o extra, o desconhecido. Nem sempre a escolha é suficientemente atenta, nem sempre da forma ideal, principalmente porque o que é ideal é i-de-a-li-za-do, i-ma-gi-na-do, por vezes em sonho, por vezes em delírio, de controle, de previsibilidade, de segurança.
Não há retorno, só seguir em frente cultivando músicas que nos fazem dançar e suspirar.
Dá uma olhada nisso…
Ascender socialmente é também uma forma de migração – não geográfica, mas simbólica. No ensaio O labirinto emocional da mobilidade social e econômica, Kályton Resende mergulha na experiência de quem atravessa as fronteiras da própria classe social e, ao chegar ao “novo destino”, descobre que pertencer não é tão simples assim. O texto não fala diretamente sobre migração, mas a busca por uma vida melhor – e os desafios emocionais que vêm com ela – é um tema comum a quem muda de país e a quem muda de classe. Vale a leitura!

Obrigado pelo interesse e pela leitura. Tomara que tenha sido bom pra você. Se quiser saber mais sobre o projeto, só clicar aqui.
Abraços e até breve.