Saída, para fotografar, na Urca.
Registros são imperfeitos como nós, mas são perfeitos enquanto autênticos
Terça-feira de agosto, inverno de 2013, poucos minutos após o meio-dia. Tinha um sol, um calor moderado e uma brisa gostosa vindo da Praia Vermelha, essa que está ao fundo borrado da imagem. Fica na Urca, bairro da zona sul do Rio de Janeiro.
A foto acima foi um dos resultados do exercício proposto por uma professora de fotografia do saudoso Ateliê da Imagem. A missão era iniciar a prática de fotografar no modo manual, ou seja, tirando do modo automático. Neste modo manual, somos nós quem decidimos como a imagem será registrada, e não a tecnologia do fabricante do equipamento. Exercício de escrita com a luz, manja? Achei poético.
Os borrões das primeiras imagens são lúdicos. Brilhinhos. Os subsequentes irritam. Ruidosinhos. Quando vou dominar esta técnica? Pressa imatura. Mas super entendi (e comprei) a proposta de aprender, de sair do conforto limitante do modo automático e pensar de maneira mais experimental como poderia, literalmente, imprimir o meu olhar.
Saí da aula ao meio-dia, peguei emprestada uma câmera na própria escola e fui para a praia fazer o exercício. Eu estava de férias do trabalho e me dei de presente o curso de fotografia que há tempos queria fazer. Introdução, conteúdo bem básico mesmo. Eu amei. Me senti um privilegiado, o burguês safado que habita meu corpo ficou alimentado de possibilidades. Cartier-Bresson é meu pastor e boas imagens não irão faltar.
O modo manual nos permite planejar a imagem que intencionamos. A gente passa a entender que, num registro, tudo é escolha. Pelo menos deveria ser. Um exercício de cidadania, entende? Não nos limitamos ao enquadramento e ao timing do clique.
A gente coloca intencionalidade na ação e vamos lidar com isso. Autoralidade demanda assumir riscos, perder oportunidades, errar e acertar bonito. Processo, presença, atenção. A vida é abundante o suficiente para acalmar nossas pressas em acertar de cara, podemos errar. Não existe erro, existe processo. É por aí, né?
Este exercício, o primeiro que fiz na vida com uma câmera semi-profissional, tinha a proposta de fixar o foco da câmera em um ponto fixo em um objeto que pudesse mover. Escolhi a minha mão esquerda. Tenho mais firmeza na direita. Depois, encontrei um menino no balanço. Peguei o jeito. Voltei para minha mão esquerda, deu certo, dentro das minhas condições normais de temperatura e pressão, claro.
Daí, tem que abrir o diafragma para a luz entrar por mais tempo, mover esse objeto e notar como o que está desfocado, ao fundo, fica borrado. Algo mais ou menos assim:



O panning é uma técnica fotográfica que cria imagens com um forte senso de movimento. Nela, o objeto principal em movimento aparece nítido, enquanto o fundo é desfocado, transmitindo dinamismo e velocidade. Essa técnica é amplamente usada em fotografia esportiva, de veículos e de animais em movimento.
Movimento. Outra palavra que destaco dessa memória e deste exercício. Luz, corpos, respiração, objetos, aspirações, tudo em movimento o tempo todo.


Não se trata de resultado, mas de processo. Não é, ainda, sobre padrões estéticos, mas sobre a estética. De experienciar o olhar, o ver. Não é sobre treinar, é sobre colocar-se em movimento, para apurar, para o coração decantar em perspectivas e a gente conseguir acessar o sutil que preenche os pulmões de ar fresco.






Leva tempo para sair do modo automático. Leva tempo para aprendermos sobre a dinâmica dos elementos que interferem num registro, que apesar de ser único, nunca é definitivo.
Leva tempo para dominarmos as técnicas e as linguagens. Talvez nunca dominaremos nem luz, nem poesia, mas o registro, esse precisa ser feito. É imperativo. Somos feitos deles. Imperfeitos como nós, são perfeitos enquanto autênticos.
Aprendi na escola, que vírgula indica pausa e ponto final indica conclusão. Eu erro muito o emprego da vírgula, ainda estou aprendendo. Sinceramente, ando usando mais vírgulas do que a institucionalidade me permitiria, mas é isso que tem para hoje e o que sinto que estou precisando. O ponto final eu deixo para algum cansaço pontual ou para a vida-morte colocar quando chegar a hora do que eu não compreendo nem alcanço.
Timing é essencial, eu sei, mas vírgulas também, mesmo nas horas erradas. A gente respira entre as palavras ininterruptas. Então, fale, escreva, fotografe, filme, pinte, desenhe, esculpe, molde, borde, costure, grave, componha, registre.
No seu, tempo, possível.
Episódio da semana
Neste episódio, eu converso com a Claudia Barros. Em 2022, ela partiu de São Paulo para Pequim, na China, com a família. Ela tem formação e atuação profissional interdisciplinar, sempre com foco em pessoas. Tem um olhar sensível, uma fala tranquila e um espírito astuto. É uma pessoa de fé na vida e no ser humano. Tem um riso meio tímido, meio largo, mas expressivo e recorrente. Nossa conversa aconteceu em julho de 2024.
Ao longo da conversa, Claudia cita este documentário aqui:
Caso se interesse em assistir ao filme ‘A ponte de Bambu: uma família entre o Brasil e a China’, tem uma transmissão feita pelo Eduardo Moreira e o ICL aqui.
Chegadas e partidas
Sempre que esqueço o valor do tempo e das distâncias, assisto a este programa da Astrid, que aliás tem episódios novos no GNT. Delicinha demais, sempre cai um cisco para mim aqui, uma coisa.
Isso não é absolutamente genial?
Já que estamos falando de tempo, gosto dessa perspectiva e dessas possibilidades de contagem dele (e de alguns sucessos).
Verde
Não vim falar do verde de outrora, mas preciso começar por este. Por alguma razão que até hoje desconheço, quando criança quase adolescente, eu tinha muitas camisas verdes. De fato, não sei se eram muitas ou se repetidas vezes usava duas ou três peças surradas de tom claro, quase azul. Lembro de uma verde-musgo, que adorava. De marca, foi herdada de um primo mais velho e “abastado”. Ao vesti-la para brincar, me sentia confortável e em viagens imaginadas induzidas por imagens de filmes do norte do mundo que mostravam campos vistos de cima.
Um barato, o lúdico. Verde foi brincadeira. Agrião! Uma vizinha de mesma idade, na época, me chamava de agrião, de tanto que eu usava verde. É, talvez eu tenha sido um agrião mesmo, meus cachos levantados pelo ar, de tanto correr, presos pelo suor na testa de quem corria o tempo todo. Ainda corro, mas definitivamente suo menos.
O verde de hoje é música e poesia da temporalidade, sobretudo da agilidade do tempo, marcado pelas estações do ano. Neste momento, Sílvia Pérez Cruz canta verde no meu ouvido. Eu amo o verde que sai da boca desta mulher, não apenas nesta música. O outono colorido lá de fora, que vivi ao escrever este texto, me seduz e quase faz com que eu me distraia e torça para o verde virar outros tons, logo, e por completo. Traição?
Sei que me arrependerei de ceder aos encantos velhacos da maturidade das folhas que eram verdes, daqui a pouco ficarei esperando ansioso para ele voltar, esse danado. Mas eu cedo, as cores que substituem o verde despertam em mim um vulcão de gratidão e um sentimento de urgência em viver a vida, ela está acabando. Verde é vida, começa inclusive com a mesma letra. Péra, vida é verbo? Verde é.
Em minha terra, o verde parece fixo. Na terra onde estou, ele vem rápido e fica pouco. Mas o suficiente para ensinar que o tempo passa, tudo muda, e o verde sempre volta. Não cansa? Verde é a cor que fica por mais tempo. Insistente. Ela não é só energia potencial, é energia cinética também. Ele sempre volta e não existe conforto maior. Não reclamo.
Verde será lembrança, até voltar a ser presença. Para muitas pessoas, o verde está associado à esperança. Para mim também, uma esperança-possibilidade, uma esperança de ver o momento, de pertencer a uma complexidade. Ser de algo, de alguém. As cores do outono somente são possíveis porque houve o verde. Ele veio antes. Ele volta, certo.
Verde, na minha língua, tem até verbo. Ver. Tem também preposição de abordagem genérica. O de é tribalista, é de geral, não é da ou do, é de. Tem até um quê de pertencimento. Verde começa com v, assim como velejar, validar, vociferar, vender, votar, versar, verificar, valorizar, vacilar, voltar, vibrar, vegetar, vigorar, vomitar, visitar, visar, ventar, vacinar, vaticinar, variar, vigiar, venerar, viajar, voar, vestir, visualizar, vasculhar, vocacionar, vitaminar, vazar, velar, vingar, vedar, vangloriar-se, vencer, vitalizar, valer, ventilar. Verdade.
Faltam poucos dias para o verde estar autorizado a voltar. Me alegro.
Te deixo com Adélia. Um abraço e até breve.
Para o desejo do meu coração, o mar é uma gota.
Adélia Prado